Ernesto Candeias Martins, docente da Escola Superior de Educação do IPCB, acaba de lançar o seu novo livro “As infâncias na História Social da Educação”, publicado pela Cáritas Editora, numa sessão em que a apresentação da obra esteve a cargo do Juiz desembargador Doutor Paulo A. Guerra do Centro de Estudos Judiciais da Universidade de Coimbra.
Os historiadores têm analisado as conceções sobre a educação da infância que originaram a existência de práticas escolares e não escolares (instituições de assistência educativa e/ou de recolhimento), dependendo das finalidades a elas atribuídas. Estes posicionamentos historiográficos, relacionados com a criança e a sua infância(s) reclamam uma análise hermenêutica e uma reflexão integrada no tempo e espaço histórico (contexto), com rigorosidade e validade interpretativa. A historicidade e a complexidade dos fenómenos na realidade da infância ou da criança, principalmente as ‘outras infância’, aquelas à margem da normalidade, estabelecida pela escola e sociedade, estiveram marcadas pela historicidade em si da História, ou do caráter histórico da infância na modernidade e contemporaneidade. Este é o propósito do livro abordar a história dessas ‘outras infâncias’ nos seus diferentes enunciados e no contexto histórico em que viveram. Na sequência de estudos anteriores, o autor também neste livro não assume, em exclusivo, o termo ‘infâncias’. Ainda que desenvolva o seu pensamento nessa convicção, admite a duplicidade entre infância e infâncias. Necessita do termo infância, porque o singular-substantivo é mais abrangente e indeterminado que o plural, daí, em regra, os conceitos serem enunciados no singular. Correlativamente, a cientificidade e a simbologia inerentes à infância são-lhe necessários como contraponto, distinção e campo onde mergulham e ganham propriedade categorias incluídas ou implícitas em infâncias. O primado do pensamento do autor é de que as diferentes infâncias se obtém por dedução do nuclear socio-histórico: infância. Não cabe aqui dialogar com o autor sobre a justeza deste primado, mas anotar quanto há de esforço no texto do autor para constituir e instituir o que chama de “infâncias outras”. Cabe também desafiá-lo a que não esmoreça na coragem de, pedra a pedra e de modo indutivo, trazer ao leitor esses outros perfis de infância, (in)terrompendo contínuos temporais e demarcando tempos fortes nos planos socioeconómicos, culturais, educativos, pedagógicos.
O professor catedrático em História da Educação da Universidade de Lisboa, afirma no prefácio que a atmosfera de bem com que o autor escreve e com que apresenta a construção histórico-social não pode sublimar a realidade portadora de desigualdades, injustiças, infâncias sem infância, mas também não pode deixar de levá-lo a historiar processos, movimentos, convenções sociopedagógicas que visaram a solução das assimetrias. Insiste que ninguém como Ernesto C. Martins conhece as dimensões e as características de tais quadros, pois que estão presentes na documentação, nos arquivos institucionais (materiais, escritos, icónicos), nos testemunhos e nos relatos de vida que reconstitui, analisa, dá a conhecer. Á realidade sociocomunitária da marginalidade e da delinquência, aos quotidianos de rua e de internato contrapõe as obras de assistência, filantropia, benfeitoria e caridade, bem como as histórias de vida de pedagogos e a história das principais instituições de acolhimento e reeducação, em Portugal. Aqueles quadros e estas obras têm merecido do autor o melhor do seu tempo.
O livro é composto por quatro capítulos, para além da introdução. Ainda que haja recorrências e algumas repetições, os quatro capítulos constituem uma sequência programática, que vai da teoria á prática; da conceção á reificação e aplicação; de uma genealogia histórico-social para políticas e instituições, enfim, de uma meta-infância para infâncias outras abandonadas, recolhidas, institucionalizadas. Na Introdução, Ernesto Candeias Martins aborda a questão epistemológica, incidindo no diferendo infância-Infâncias, introduzindo a questão das perspetivas científicas e das disciplinas curriculares a elas associadas. Justifica a relevância que atribui á História da Infância, educativa, cultural, social, pois que permite um diálogo com fontes materiais, arquivísticas, icónicas e, também, com recordações e representações. Particularmente, insiste que o campo da História Social possibilita “a (re)construção das representações sociais dessas ‘infâncias’ que, devido às suas caraterísticas, situações/condições sociais, atos, experiências, formas de ser e de comportamento, legitimaram saberes jurídicos, médico-assistenciais, higienistas, pedagógicos, psicológicos, criminológicos, sociológicos, psicanalíticos” (p. xx). É também na Introdução que o autor dialoga e recupera estudos de História da Infância e matrizes histórico-conceptuais como a de Ruiz Berrio, que servem de referência ao pensamento e ao discurso do autor. Especifica a sua intenção “compreender, na base da História da Educação e da História Social da Infância, os processos e os contextos educativos diferenciados dados a essas outras infâncias” de que enumera “a infância diferenciada, desvalida, infratora, em risco ou perigo moral, a marginalizada, deficiente ou com necessidades educativas especiais” (p. xx).
No capítulo I o autor procura contrapor um olhar historiográfico a olhares sociológicos, psicológicos, pedagógicos, antropológicos. Procura um duplo efeito: o de comprovar que a emergência da infância no trânsito do Iluminismo e do Romantismo foi, no essencial, sincrética, mas assinalou uma rutura e constitui a origem da infância moderna; o de apresentar a emergência de um ente histórico como constructo social, político, pedagógico. O autor refere que aquelas teses foram sucessivamente revisitadas e revistas, mas refere sobretudo como foram surgindo diferentes conceções de infância. Ao apresentar as conceções para a construção social e para a diferenciação, Ernesto C. Martins segue um processo epistémico descendente e de convergência com as práticas, não só para mostrar que há frequentemente uma dissociação entre as conceções e as práticas, quanto para reiterar que é sobretudo nas práticas que as diferenciações se evidenciam e se tornam interpelativas. Entende que não só alguns quadros analíticos e teóricos são de difícil aplicação, quanto é necessário fazer uma “história desde baixo”. No século XIX, o Estado começou a intervir nas situações irregulares da(s) infância(s). A criança foi tomada como objeto de intervenção e tutela (jurídica e educativa), devendo ser protegida por estar em perigo ou em risco. Mas recorda o autor que, frequentemente foram as instituições educativas não-formais (privadas, municipais, filantrópicas) que tiveram um papel importante no acolhimento, assistência e educação a crianças diferenciadas.
No capítulo II o autor procura demonstrar como na contemporaneidade a infância foi ganhando relevo na História da Educação e nas Ciências da Educação. Tal aconteceu em consentâneo com outros domínios científicos, mas ficou também associado á escola, como local substitutivo de espaços e agentes tradicionais de acolhimento e educação, e como meio de aculturação escrita. Além dos aspetos substantivos, o autor procura analisar a evolução da historiografia á luz do reconhecimento da progressiva afirmação da infância como construção-confluência de distintos quadros disciplinares e de distintos fatores; o reconhecimento da diferença também envolveu a especificidade científica, designadamente na História. Faz uma longa incursão na historiografia, permitindo ao leitor tomar consciência de aspetos epistémicos menos discutidos, antes de ser introduzido á problemática da História da Infância, na História da Educação (Social, Especial). É apresentado diferentes conceções subjacentes á Sociologia e, na sequência, analisa o estatuto da História da Educação procurando demonstrar que também “na agenda historiográfica da infância [surgiu] a prioridade pela ‘outra infância’, a desprotegida, abandonada, em risco, marginalizada e (pré)delinquente, ou seja: a história das Outras infâncias, as que não tiveram um caminho de normalização na sociedade de cada época” (p. 60). Assume particular relevo a sistematização sobre as fases de inclusão da Educação Especial: abandono e desamparo; criação de instituições ou aulas especiais; integração diferenciada; inclusão nas aulas regulares. As preocupações epistémicas levam o autor a apresentar um leque de diagramas articulando criança/infância; H.ª nas diversas perspetivas; teorias da educação especial; instituições educativas.
No capítulo III o autor vai incidir sobre instituições que implementaram programas educativos “impregnados de uma educação diferenciada ou especializada (intervenção socioeducativa) de teor cívico e educação não-formal” (p. 77). Apresenta vários eixos e planos de desenvolvimento pedagógico, sistematizando diferentes correntes para convergir na instituição educativa como centro para uma resposta educativa especializada. Retoma a noção e a evolução das teorias pedagógicas, dando curso á noção de que “cada teoria é uma imagem de referência que incentiva ou não a transformação organizacional nos seus componentes primordiais” (p. 81). Depois de aproximar teoria e paradigma, referindo que a aquela integra este, conclui que a mudança de paradigma “na educação reequaciona o posicionamento do sujeito da educação, o que implica novas compreensões de como aprendemos e como interatuam os sujeitos da educação (criança, jovem) uns com outros, de modo a situá-los no eixo dos processos institucionais” (p. 82). É, ainda, apresentado uma evolução das conceções de deficiência e educação especial, na longa duração da Contemporaneidade e na transversalidade de países, disciplinas científico-pedagógicas, pedagogos, programas, políticas, convenções. Na sequência, introduz a temática da tutela estatal, que levou á institucionalização, no trânsito do século XIX, e a que, no século XX, vieram associar-se a medicalização e a figura do curador, nomeadamente nos internatos masculinos. Nos internatos femininos, a noção de habitat doméstico e familiar foi mais frequente. Ernesto C. Martins recupera um historial da legislação tutelar, da proteção e das tutorias em Portugal, que já havia publicado noutros trabalhos, e acrescenta a noção e um novo instrumento da doutrina da proteção integral, surgidos na sequência da Declaração dos Direitos da Criança proclamada em 1959. Conclui o autor que, na sequência da Convenção sobre os Direitos da Criança [1989], ocorreu uma modificação “desde o ‘menor delinquente’ ao ‘adolescentes em conflito com a lei’, a partir da década de 90”, mudança que explicita nos seguintes termos: “passou-se do sistema tutelar (repressivo) para um sistema de responsabilidade que desse garantia ao menor; da categoria de adolescente infringindo atos antissociais para uma categoria jurídica de apenas infrações penais, típicas, antijurídicas e culpáveis” (p. 92). Em Portugal, esta promoção dos direitos dos menores ficou consignada no conjunto de diplomas desde a década de 90.
Após uma breve apresentação do conceito e da historiografia das instituições, o autor entra num dos temas caros ao livro: “instituições e intervenções á infância diferenciada”. Na criação destas instituições estiveram princípios de ordem assistenciais e médico-pedagógicos, em que a deficiência foi frequentemente tomada como doença, e de foro psicopedagógico, visando uma ação educativa especializada. Eram instituições totais. Ao longo do século XX, houve mudanças na pedagogia destas instituições, seja no sentido de maior individualização e subjetivação, seja no sentido da diversificação, surgindo, por fim “uma nova doutrina que pretendia tirar a criança/menor da institucionalização penal, ampliando o âmbito de ação deste novo sistema de proteção integral (doutrina dos direitos da criança) a todos os setores da infância em risco” (p. 98). Reserva o autor dois aspetos para abordar “os asilos e as instituições de assistência e filantropia”, de que resume a evolução em Portugal, e que “conjugavam na sua missão as funções de proteção social/assistencial e o seu projeto educativo/formativo” (p. 101). Refere que “as escolas asilares” eram procuradas por estratos sociais carenciados; dispunham de regulamento próprio e existiam em diversas localidades, contando com a beneficência pública e privada. Com efeito, conclui, “seja por necessidade de promoção social ou económica, seja por assistência educativa, esta procura dos alunos por este tipo de escolas fazia que as empresas pudessem financiar a sua existência” (p. 102). Num segundo item, reservado para “Instituições especiais para crianças anormais/ deficientes”, Candeias Martins começa por referir que a “preocupação pelos anormais e respetiva educação especial é recente” (p. 102). É uma problemática complexa ao nível da infância, nomeadamente na caracterização, uma vez que desde finais do século XVIII “toda a criança com deficiência (físico-motora, mental, psíquica, sensorial e social) era considerada pelos institutos médico-pedagógicos como ‘anormal’” (p. 102). Foi para final do século XIX que foi sendo introduzida a preocupação de diferenciação. Após uma breve resenha histórica, conclui que “nos finais do século XIX, começos do século XX, surgem algumas aulas e escolas especiais e institutos médico-pedagógicos (reabilitação, assistência)” (p. 102), correspondendo á noção de que pessoas portadoras de Necessidades Educativas Especiais “podem ser produtivas se receberem uma educação especial e tratamento em estabelecimentos adequados” (p. 104). Na década de 60 do séc. XX, acentuaram-se as críticas às práticas de uma educação segregadora, crescendo a sensibilidade e a implementação de práticas progressivamente centradas no próprio sujeito. O terceiro tipo de instituições a que se refere o autor são “Instituições de tratamento reeducativo e de apoio tutelar”. Com origem em finais do século XVIII, estas instituições assumiram as características de estabelecimentos presidiários, onde os reclusos, jovens ou adultos, eram tratados de igual modo. Nos finais do séc. XIX, foram criadas tutorias e colónias agrícolas para os presidiários mais jovens. Na sequência, o autor enumera os diferentes tipos de estabelecimentos tutelares e de reeducação criados.
No capítulo IV Ernesto C. Martins revela que, em Portugal, o movimento da Escola Nova também ficou associado a estabelecimentos para crianças e jovens desintegrados. Neste capítulo, incide sobre instituições educativas não-formais particulares. Retoma a definição de que “independentemente do seu modelo organizativo e da estrutura orientadora”, uma instituição educativa não-formal particular apresentava “um padrão de controlo, uma programação da conduta individual, imposta pela sociedade sendo, no sentido usual, uma organização que abrangia os internados” (p. 111). Na sequência, apresenta, historia e caracteriza algumas daquelas 7 instituições, que para além do processo educativo foram também projeto de vida para os seus internados.
Por fim, o autor ressalva a complexidade e a relevância da infância na Contemporaneidade. Assinala que, correlativamente aos 2 principais fatores de afirmação e normalização (escola e trabalho), há infâncias outras. A pluralidade está patente neste livro, como justifica o autor, reiterando que infância no singular é “conceito/representação, um tipo ideal caraterizado por elementos comuns às diversas crianças, o termo infâncias indica [a] diferenciação entre as diferentes infâncias em função da condição social, racial e de género. Estas são as que designamos por outras infâncias” (p. 158). Tomou “como objeto as infâncias (‘outra infância’) na perspetiva histórica (período do século XIX e XX), em especial, inserida na História da Educação [social] e história [social] da infância, ou seja, na História Social” (p. 159). Abordou este assunto, tendo subjacente a importância da História (Social) da Infância e o significado desta história na História da Educação (Social). Termina, revisitando as diferentes conceções de infância e interrogando a relação entre escola e infância. Salvaguarda no entanto que, do lado da criança, a escola é “seu lugar de educar-se e ser um cidadão” (p. 161). De facto, os investigadores e os leitores de História Social da Infância e H.ª da Educação passam a dispor de um denso tratado que compendia os debates, as indeterminações, mas também os avanços com que foram sendo construídas as diferentes conceções de infância, seja em Portugal, seja no plano comparado. Este livro é um esforço de integração e síntese e está escrito em distintos registos. A leitura transporta para um tempo longo, em parte remoto, pela distanciação entre o leitor e a realidade; longo também, porque a densidade e a indeterminação política e social torna intemporal o que a brevidade e a efemeridade contemporâneas se apressaram a apagar e a sublimar. É um testemunho e um contributo. Um testemunho sobre a diversidade de vidas e de destinos; um contributo fundamental para o conhecimento histórico e para a memória da educação, nos planos nacional, internacional e sociocultural.
 

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